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Um best-seller internacional por uma das mais empolgantes novas vozes da literatura japonesa
Arranjar um emprego sério, casar, ter filhos. É isso que todos esperam que Keiko Furukura faça. Aos 36 anos, ela continua no trabalho da juventude em uma loja de conveniência e nunca se envolveu romanticamente. Ela é feliz assim, mas desde pequena é considerada estranha — sua família e amigos se perguntam desesperadamente como ajudar Keiko a ser uma pessoa normal.
Mas é na konbini, com suas regras estritas para os funcionários e uma dinâmica precisa de funcionamento, que Keiko encontra o seu lugar. Observando as recomendações dos gerentes e copiando os trejeitos e modos de vestir e falar de seus colegas, ela finalmente se sente uma peça no mecanismo do mundo.
Com humor ácido, Sayaka Murata cria um retrato realista e satírico da sociedade contemporânea e sua obsessão com a normalidade, o trabalho e o sexo. Às vezes, mudando um pouco as lentes e a perspectiva, veremos que quem se considera normal pode não ser tão normal assim...
© Bungeishunju Ltd.
Sayaka Murata nasceu em 1979 em Inzai, na província de Chiba, próxima a Tóquio. Fã de mangás e ficção científica, desde a infância já escrevia histórias. A família mudou-se para Tóquio, onde ela frequentou a Universidade Tamagawa e passou a estudar escrita criativa paralelamente.
Seu décimo livro marcou seu nome entre os mais celebrados da nova literatura japonesa: a obra está chegando à marca de 700 mil exemplares vendidos no Japão, ganhou o prêmio Akutagawa, um dos mais prestigiosos do país, e rendeu à autora um lugar entre as mulheres do ano da Vogue Japão em 2016. A obra está no prelo ou publicada em 18 idiomas pelo mundo.
Antes, Murata havia recebido os prêmios Gunzo e Noma, em 2003 e 2009, ambos voltados para novos escritores, e o prêmio Yukio Mishima, em 2013. Os temas abordados por ela costumam se relacionar à não conformidade dentro da sociedade japonesa nas relações de gênero, trabalho e na sexualidade. Seu conto “Um casamento limpo”, sobre um casal que deseja conceber um filho sem fazer sexo, foi publicado na Granta Vol. 13: Traição, também em tradução de Rita Kohl.
Curiosamente, Murata, que mora em Tóquio, também trabalhou por mais de uma década em uma konbini, desde a faculdade até quase um ano depois do sucesso estrondoso deste romance. O trabalho na loja a ajudava com a rotina da escrita e lhe permitia uma das suas atividades preferidas: observar pessoas comuns em seu dia a dia.
© Kentaro Takahashi
Sayaka Murata era funcionária em uma konbini quando este romance recebeu o Prêmio Akutagawa, um dos mais prestigiosos no Japão, em 2016. O emprego ajudava Murata a se sustentar no início de sua carreira literária, mas, mesmo depois de já razoavelmente estabelecida como escritora, ela continuou lá (e só recentemente deixou a posição). O trabalho dava ritmo ao seu cotidiano e lhe permitia observar as pessoas e tirar inspiração para suas histórias. Durante a coletiva de imprensa na entrega do prêmio, ela afirmou que seguiria no serviço caso o gerente não se importasse — fato que causou grande surpresa e foi muito noticiado.
As lojas de conveniência japonesas, cenário do livro, não se parecem muito com as brasileiras. Apelidadas de “konbini” (abreviação de convenience store, ou “konbiniensu sutoa”), elas são mais como minimercados: além de todo tipo de bebidas quentes e geladas, comidas prontas (como pães doces e salgados), fast-food, bentô (marmitas prontas que podem ser aquecidas na própria loja), bolachas, chocolates, sorvetes e salgadinhos, as konbinis têm também ingredientes frescos e congelados para refeições simples e, em alguns casos, frutas e hortaliças. Revistas, cosméticos, artigos de papelaria e de higiene pessoal e até peças de roupa básicas (para pequenas emergências, como no caso de uma meia-calça rasgada) também podem ser encontrados.
Os clientes também podem usar uma série de serviços, tipo caixas eletrônicos, impressão, cópias e digitalização, envio de fax, postagem e recebimento de encomendas expressas, recarga de celular, venda de ingressos para shows e eventos, e pagamento de contas e boletos. Por fim, boa parte destas lojas funciona 24 horas por dia, 365 dias por ano. Com tudo isso, as konbinis se tornaram parte fundamental na vida dos japoneses nos centros urbanos. Existem hoje mais de 50 mil dessas lojas no país. Em alguns bairros é comum encontrar uma a cada esquina, e até mais de uma em um mesmo cruzamento.
Uma das características fundamentais entre as konbinis é a padronização: todas seguem a mesma configuração e funcionamento básicos. Os padrões se mantêm graças a manuais meticulosos que definem não apenas a dinâmica e organização de cada cadeia de lojas como também o comportamento dos funcionários, desde a maneira como devem prender os cabelos e cumprimentar os clientes até os gestos corretos para entregar o troco e o recibo.
Os funcionários das konbinis, com exceção do gerente, trabalham com contratos temporários e recebem por hora, uma forma de contratação muito comum no Japão chamada arubaito (do alemão arbeit). A remuneração é relativamente baixa, mas é possível escolher os dias e turnos com certa liberdade. Assim, é a forma mais comum de trabalho para estudantes do ensino médio ou universitários, donas de casa que trabalham para complementar a renda do marido, ou para quem precisa pagar as contas enquanto se dedica a outra atividade que ainda não rende o suficiente (como músicos, atores, ou escritores).
Em oposição ao shain, forma de trabalho efetiva e com contrato (mais ou menos equivalente a um emprego CLT no Brasil), o arubaito, por não oferecer garantias ou benefícios trabalhistas, não é visto como respeitável para uma pessoa formada e que não se dedique a outra atividade principal, como é o caso de nossa protagonista. Trabalhar em uma konbini, então, menos ainda: o valor pago por hora é baixo e as atribuições são consideradas triviais (apesar de podermos observar no romance que o trabalho não é tão trivial assim).
Sayaka Murata usa este contexto tão particularmente japonês para colocar, na voz de sua estranha protagonista, questões que ultrapassam esse universo e atingem pontos cruciais da vida em sociedade — o peso que as expectativas alheias e a ideia de “normalidade” têm na vida dos indivíduos; a forma como absorvemos a maneira de falar e agir das pessoas ao nosso redor; e nosso esforço, muitas vezes inconsciente, para identificar e seguir as normas sociais.
Tendo em vista a grande repercussão que o livro teve no Japão e em seus lançamentos internacionais, a Estação Liberdade, em parceria com a Fundação Japão e com a colaboração da JAPAN HOUSE São Paulo, realizará uma noite de conversa focada na obra de Sayaka Murata, na literatura japonesa contemporânea e nos temas abordados no livro.
Com Donatella Natili (professora da UnB, especialista em literatura japonesa moderna e contemporânea, com pós-doutorado na Universidade de Waseda, em Tóquio, onde também foi professora), Rita Kohl (tradutora literária, formada em letras pela USP e com mestrado na Universidade de Tóquio. Traduziu obras de autores como Yoko Ogawa, Haruki Murakami e Hiro Arikawa) e Victor Hugo Kebbe (especialista em antropologia social, com graduação, mestrado e doutorado pela Ufscar. Foi pesquisador associado da Shizuoka University e da Nazan University).
Data: 19 de setembro, quarta-feira, às 19h
Evento aberto ao público. Retirada de senha no local 1h antes do início.
Local: JAPAN HOUSE São Paulo — Av. Paulista, 52 — Bela Vista. São Paulo
Querida Loja de Conveniência
Tradução de Rita Kohl
Querida Loja de Conveniência,
Permita que eu dispense os cumprimentos formais. Já faz dezessete anos que te conheci, mas é a primeira vez que te escrevo uma carta assim.
Quando nos conhecemos eu tinha dezoito anos. Naquela época, eu te achava muito assustadora. Sentia que você pertencia ao mundo dos adultos e pensava que logo seria enxotada do seu lado. Ficava muito nervosa quando ia te encontrar e sempre levava no bolso um caderninho, no qual anotava meticulosamente cada detalhe que identificava dos seus gestos e manias.
Acho que nem eu nem você saberíamos dizer quando é que nossa relação deixou de ser assim e nos tornamos amantes, não é? Se eu precisasse escolher algum momento, seria aquela primeira noite que passamos juntas, às duas horas da madrugada... Naquele dia, outra pessoa precisou faltar de última hora e me imploraram para que eu continuasse dentro de você até mais tarde. Eu, que sempre te encontrava de dia ou ao entardecer, senti meu coração bater mais forte ao respirar o perfume da noite de verão que preenchia o seu interior.
Quando estava indo embora, de repente eu quis ver você ficar sem jeito, então perguntei: “Você acha que seres humanos e lojas de conveniência podem fazer sexo?”
Achei que você ficaria corada ou constrangida, mas você respondeu sem se abalar:
“Que pergunta! Pois já não estamos fazendo? Você entra dentro de mim todos os dias.”
Talvez a gente tenha começado a namorar na hora em que você disse, séria, essas palavras.
Depois disso, eu comecei a me arrumar para ir te ver. Não era mais um compromisso de trabalho, era um encontro romântico. Você também passou a me receber um pouco mais vaidosa, com as prateleiras de revistas organizadas e os espelhos brilhando.
Pensando direito, por essa lógica você também estaria fazendo sexo com o senhor que trabalha no turno da noite, e com o casal de gerentes, e com as centenas de clientes que entram e saem da loja todos os dias. Mas você diz, como se fosse óbvio: “Imagina, você é a única com quem já fiz isso!” Então acho que, para você, deve ter alguma diferença.
Deve ter sido uns três anos depois que nos conhecemos. Me contaram, de repente, que você iria morrer dali a um mês.
Fiquei tão surpresa que perdi a fala. Nunca imaginei que lojas de conveniência pudessem morrer depois de apenas três anos.
Mas você morreu mesmo. Nos dois últimos dias antes disso, todas as coisas no seu interior ficaram por metade do preço e uma multidão de pessoas te invadiu para comprar tudo o que podia. Assistindo àquilo, eu pensei que nunca mais ia te ver.
Fiquei muito surpresa quando o gerente me contou que você renasceria em outro lugar, a quinze minutos de bicicleta de onde vivera antes. Era a primeira vez que eu namorava uma loja de conveniência, e não sabia da sua natureza de morrer e renascer várias vezes desse jeito.
Você renasceu e nós nos apaixonamos novamente. Depois disso eu tive um caso com uns restaurantes de fast-food, você morreu de novo, várias coisas aconteceram. Na terceira vez que você morreu, eu já estava acostumada. E até hoje, passados dezessete anos de despedidas e reencontros, continuo ao seu lado.
Me perguntam toda hora: “Por que você namora uma loja de conveniência? Não acha ruim não ser uma pessoa?” “Não está cansada, depois de tanto tempo?”. Também tem quem diga que não é um namoro sério, que deve ser só uma justificativa para eu conseguir material para escrever. Eu não me incomodo, já estou acostumada. Mas outro dia, quando estávamos juntas e eu comentei isso de brincadeira, você pareceu meio triste. Então eu disse: “Me desculpa por ter te contado! Quer que eu vá matar a pessoa que me falou isso?”. Falei meio de piada, meio de verdade. “Matar as pessoas não é muito legal. Porque, diferente de mim, as pessoas não voltam depois de morrer”, você respondeu, séria.
Aliás, é raro você deixar seus sentimentos transparecerem no rosto. Não sorri quando eu faço alguma brincadeira, nem se abala ou fica vermelha quando eu me aproximo de repente com demonstrações de afeto. Eu achava que, mesmo sem eu dizer, você sabia por que é que eu gosto de você. Mas outro dia, no meio de uma discussão interminável quando falamos pela centésima vez em nos separar, até você falou a mesma coisa: “Eu não entendo por que você me namora...”
Fiquei chocada. E foi por isso que resolvi te escrever. Porque quero que você me entenda.
Se eu fosse listar todas as coisas que gosto em você, poderia escrever cem páginas e ainda não seria o bastante. Então vou ser breve e dar apenas um motivo.
O principal motivo pelo qual te amo é que você fez de mim um ser humano.
Todo mundo fala que você não é gente, só que até te conhecer, eu é que não era gente. Ou, no mínimo, eu era um ser humano que não se saía muito bem como ser humano. Estando ao seu lado eu me tornei, pela primeira vez, humana.
Você me deu a passagem do tempo, com manhã e tarde e noite, e você me presenteou com estranhos sapatos para caminhar pelo mundo real. Para mim, você foi mágica. Se não fosse por você, acho que eu continuaria vivendo sem sequer perceber que existe no mundo esse momento chamado “manhã”.
Você foi o único “normal” imutável na minha vida. Por isso, todos os meus sentimentos humanos pertencem a você.
Quem sabe a gente acabe mesmo se separando, agora que estou te contando sobre esses meus sentimentos tão pesados. Porque, apesar de o amor ter me transformado nesse monstro chamado ser humano, você continua sendo, eternamente, uma loja de conveniência. Talvez o meu amor tenha crescido demais e seja penoso para você.
Às vezes eu penso como seria te perder. Talvez, sem você, eu esqueça novamente como ser uma pessoa. Tenho certo medo de ser assim tão dependente.
Mas deixe-me ficar ao seu lado só mais um pouco. Você tem uns cantos meio largados; passa o dia inteiro fazendo uma barulheira irritante — ding-dong, ding-dong; diz que é um prédio e não pode ir pra lugar nenhum então sempre temos que nos encontrar no mesmo lugar; as comidas que você me serve dizendo que são caseiras estão cheias de aditivos; de vez em quando resolve toda animada arranjar uma máquina de café ou coisa assim, “olha só essa novidade!”, e me dá o maior trabalho... E além do mais, é verdade que você deixa o senhor do turno da madrugada e o gerente e todo mundo entrar no seu corpo como querem, e eu fico desconfiada se isso não é traição. Enfim, acho que você é cheia de defeitos. Mas vai ver meu amor é uma doença grave, porque para mim esses defeitos é que são seu charme. Então, acho que é sua obrigação deixar que eu fique ao seu lado até sarar.
Amanhã de manhã, vou te encontrar mais uma vez. Ultimamente caí na rotina e ando sempre com a mesma calça jeans, mas amanhã vou colocar um vestido novinho. Então, trate de me esperar bem arrumada e limpe até dentro das geladeiras de serviço.
Aliás, a gente nunca se beijou, né? Acho que amanhã vai ser a primeira vez.
Saudações,Sayaka Murata
Dezembro de 2014