O romancista chinês Chen Zhongshi nasceu em 1942, em uma região rural próxima a Xi’an, capital da província de Shaanxi, no nordeste da China. Seu avô era professor e seu pai era uma das poucas pessoas alfabetizadas da região. Refinando seu estilo e suas preocupações temáticas, ele se aprofundou cada vez mais nas pesquisas da vida cotidiana de sua região, usando como fontes o folclore e a tradição oral, bem como documentos e gazetas locais. Com estas pesquisas, produziu algumas novelas e também escreveu seu único romance, o monumental Na Terra do Cervo Branco, que lhe garantiu prestígio internacional.
Chen Zhongshi estreou na ficção em 1973, com um conto publicado em uma revista local, e seguiu publicando uma literatura de cunho realista e regional. Com a morte de Mao Tsé-Tung e a abertura do país, conheceu a obra de autores estrangeiros como Anton Tchékhov, Honoré de Balzac e Gabriel García Márquez, além de novos olhares sobre a situação chinesa, transcendendo a visão oficial do Partido. Com o distanciamento da morte de Mao Tsé-Tung e uma gradual abertura do país ao exterior, novas possibilidades de pensar o período revolucionário apareceram na literatura a partir de 1990. É o movimento do novo romance histórico chinês, do qual esta obra é um dos principais representantes.
Em maio de 2016, milhares de pessoas se reuniram para dar adeus ao autor em seu velório em Xi’an, capital da sua provincía natal de Shaanxi. Nas suas últimas décadas de vida, o autor viu sua popularidade crescer imensamente – tudo por conta do sucesso internacional de Na Terra do Cervo Branco, que, além de receber em 1997 o Mao Dun, prêmio literário máximo de seu país, vendeu milhões de exemplares e teve adaptações das mais diversas.
Chen Zhongshi assina cópias de seu livro, White Deer Plain, para leitores em Xian em 1998. Foto: Xinhua
“Se o livro tiver a capacidade de despertar o interesse dos leitores e os ajudar a conhecer a evolução histórica da China contemporânea, ficarei plenamente satisfeito”. Era assim que Chen falava sobre sua obra Na Terra do Cervo Branco. A obra é fruto do esforço monumental de recriar as marés históricas e conflitos políticos do século XX na China, ao mesmo tempo acertando contas com a milenar tradição do país. O desejo de Chen era criar uma obra-prima que “ele pudesse levar para o caixão como um travesseiro."
Concebido em 1987 e publicado em 1993 – período em que o autor voltou à zona rural da infância para mergulhar na atmosfera que queria recriar – Na Terra do Cervo Branco é um clássico moderno da literatura chinesa. O livro alçou Chen Zhongshi ao patamar de autores como Yu Hua ou o Prêmio Nobel Mo Yan, com a diferença de que, em vez de buscar uma literatura globalizada, ele trata de assuntos eminentemente chineses. A epígrafe do livro, de Balzac, afirma que o romance é como a “história secreta de um povo”. É esse o efeito do mergulho do autor na cultura chinesa. O épico é uma história universal do poder das escolhas em confronto com a violência do tempo, das disputas humanas e das mudanças.
Além de considerada sua obra-prima Na Terra do Cervo Branco foi adaptada para diversos formatos, incluindo: ópera de Shaanxi, teatro, musicais, comédias e esculturas. Em 2010, a obra foi adaptada para o cinema num filme realizado por Wang Quan’an, incluindo os atores Zhang Fengyi, Zhang Yuqi e Duan Yihong. O filme competiu para o Urso de Ouro do 62º Festival Internacional de Cinema de Berlim, tendo Lutz Reitemeier arrecadado o Urso de Prata na categoria “Melhor Desempenho Artístico” pela fotografia. Já em 2017 a obra virou uma série de televisão chinesa, dirigida por Liu Huining e Liu Jin, e estrela Zhang Jiayi como o personagem principal. A obra também foi listada na seleção de leitura essencial do Ministério da Educação da China para estudantes universitários, devido à sua representação ultra-realista da história chinesa.
Chen tinha uma linguagem única. Em algumas de suas entrevistas é possível perceber que sua linguagem sempre foi muito aclamada pelos críticos e quando questionado sobre essa linguagem, Chen dizia que era indispensável à conexão direta com os personagens.
Em uma entrevista para a revista MCLC Resource Center da Universidade Estadual de Ohio, a entrevistadora pergunta a Chen de um momento memorável ao escrever No País do Cervo Branco o autor então cita um momento em que ele se envolve tão fortemente com um personagem que acaba deixando de lado sua caneta e fechando seus olhos para descansar, ao abri-los novamente escreve apenas nove caracteres em uma nota: "Nascer é sofrer, viver é sofrer, morrer é sofrer".
Título: Na Terra do Cervo Branco
Autor: Chen Zhongshi
Tradução: Ho Yeh Chia, Márcia Schmaltz, Mauro Pinheiro
Formato: 16 x 23 cm / 864 páginas
ISBN: 978-85-7448-304-7
Sobre a obra
Na planície que dá nome ao livro, as famílias Bai (白“branco”) e Lu (鹿, “cervo”), parte de um mesmo clã, alternam-se no poder. Acompanhamos três gerações destas famílias, lideradas respectivamente pelo honrado Bai Jiaxuan e por seu amigo e rival Lu Zulin, enquanto tentam navegar a arrasadora onda de mudanças e destruição a que o povo chinês foi submetido na primeira metade do século XX.
Com o fim da dinastia Qing e a queda do Império, em 1912, os séculos de razoável estabilidade são substituídos por uma disputa sangrenta pelo poder. Primeiro, as guerras civis: sem a figura central do Imperador, os senhores feudais locais passam a brigar entre si. Logo, a disputa entre o Partido Nacionalista (Kuomintang) e o Partido Comunista, cada um com sua ideia de libertação popular. Ao mesmo tempo, a invasão japonesa e a devastadora Segunda Guerra Mundial. Novamente, a guerra total entre partidos, que culmina na Grande Marcha e na fundação da República Popular da China sob Mao Tsé-Tung. Com o estabelecimento do novo Estado revolucionário, novos valores e formas de vida vêm substituir a cultura arraigada há milênios.
Contra esse pano de fundo histórico, o elenco de personagens memoráveis criado por Chen Zhongshi compõe um retrato das formas possíveis de viver perante as catástrofes do destino. Conhecemos a ética e a organização da vida local em comunidade; experimentamos os rituais mágicos e simbólicos tradicionais, bem como a filosofia do confucionismo – incorporados no doutor Leng e no sábio Mestre Zhu. Acompanhamos personagens em busca de suas revoluções pessoais por meio da educação, do banditismo ou da adesão aos grupos de poder. Vemos a opressão patriarcal e as tentativas de libertação feminina, encarnadas em Xiao’e e na forte figura de Bai Ling. Por fim, vemos como, com contornos trágicos, as escolhas pessoais levam as famílias a lados opostos de uma guerra fratricida.
“O escritor Yuri Al’Hanati, que comanda o canal Livrada! resumiu o livro assim: “meu Deus do céu, que viagem emocionante”
Sobre o autor, a obra e sua recepção, a professora Ho Yeh Chia, tradutora do romance, diz:
“O autor não é um dissidente nem um perseguido político. Muito pelo contrário. Chen era membro do partido e ocupou postos importantes em organizações literárias e culturais. Entre outros, o posto de vice-presidente da Associação dos Escritores da China. Quando faleceu, recebeu flores de figuras muito importantes do Partido, como Xi Jinping e Hu Jintao. Mas isso não o impediu de retratar com muita vivacidade a história de uma época marcada por embates sangrentos entro os dois partidos (Nacionalista e Comunista).
A obra, além de ganhar o Prêmio Mao Dun de Literatura em 1997, foi selecionado para a lista das leituras obrigatórias para universitários na China. A obra mais famosa de Chen Zhongshi é este romance, que é por sua vez considerado um dos mais importantes/melhores romances da literatura contemporânea da China. É um romance muito bem escrito, que recriou a história de 50 anos do país com enredos envolventes e personagens com os quais pessoas simples podem se identificar.
Sobre a questão de aproximação com o realismo mágico do tipo García Márquez. Acho que os primeiros capítulos podem dar essa impressão, mas a sensação é falsa. Porque: (a) a narrativa dos primeiros capítulos tem muito realismo, são coisas muito presentes na cultura chinesa até pouco tempo atrás. Este começo descreve bem como os chineses frequentemente enfrentavam problemas por vias que não as "normais", como consultar um geomante para determinar a posição de um túmulo, espantar fantasmas espalhando ervilhas pela casa, mudar o local ou a posição do túmulo dos ancestrais para ajudar a corrigir problemas que seus descendentes enfrentam na vida real, sonhar que algum ancestral está pedindo para mudar o túmulo, etc. Estas são atitudes corriqueiras, recorrentes; e (b) no restante do livro, os acontecimentos descritos acompanham de perto a história da China no século 20. Mesmo no episódio do ritual para pedir chuva na época da grande seca, por exemplo, é algo que era praticado na China. O romance narra esses episódios sem a intenção de criar um universo com regras próprias. Quando o autor usa figuras como o cervo branco, o lobo branco (que suga sangue de porcos ao invés de comer a carne dos animais), a meu ver, ele está reproduzindo um universo simbólico dos chineses da época que o livro narra.”