Texto escrito por Daniel Martineschen, tradutor da obra Divã ocidento-oriental, de Johann Wolfgang von Goethe

O Divã ocidento-oriental (em alemão, West-östlicher Divan) é a única coletânea de poemas publicada em vida pelo poeta alemão J. W. von Goethe. É isso mesmo que você leu: a única coletânea! Mas como? O grande poeta não escreveu milhares de poemas, sem falar no Fausto, aquele grande poema dramático?

Pois é. A grande maioria dos poemas de Goethe estão em outros locais que não em coletâneas ou “livros de poesia”: na sua volumosa correspondência, em revistas (inclusive as organizadas por ele ou em parceria com Schiller), em romances (por exemplo Mignon em Anos de aprendizado de Wilhelm Meister), em textos críticos e outros. Um ciclo de poemas pensado arquitetonicamente – no sentido que, por exemplo, entende Hugo Friedrich em Estrutura da lírica moderna – dentro da obra de Goethe encontraremos apenas no Divã ocidento-oriental.

Mas o que é um “divã”? O dicionário nos traz várias acepções para essa palavra, desde o conhecido sofá (que é até metonímia para a psicanálise), passando pelo “conselho de sábios” (que talvez se reuniam sentados em divãs), até a ideia de “coletânea”: na literatura de língua persa, árabe e turca o diwan é o livro que reúne toda a obra de vida de um poeta. O diwan cresce dia a dia, e só fica completo quando o poeta não mais escreve, mais ou menos como Folhas de capim¹ de Walt Whitman. A peculiaridade (pelo menos do ponto de vista europeu-ocidental) do diwan persa é a sua organização: os poemas são anotados em ordem alfabética da rima, pois a forma tradicional da poesia persa é o gazel, caracterizado pela monorrima. Um exemplo de gazel brasileiro veio da pena de Manuel Bandeira:


Gazal em louvor de Hafiz

Escuta o gazal que fiz,
Darling, em louvor de Hafiz:

– Poeta de Chiraz, teu verso
Tuas mágoas e as minhas diz.

Pois no mistério do mundo
Também me sinto infeliz.

Falaste: “Amarei constante
Aquela que não me quis.”

E as filhas de Samarcanda,
Cameleiros e sufis

Ainda repetem os cantos
Em que choras e sorris.

As bem-amadas ingratas,
São pó; tu, vives, Hafiz!²


Hafez – ou segundo Manuel Bandeira, Hafiz – é que foi o grande estopim para o Divã de Goethe. Hafez era poeta de Chiraz, no atual Irã, nascido entre 1310 e 1337 (a data não é certa). Sua poesia era cheia de vinho, de beatitude, de amor. Foi um dos poetas da era de ouro da Pérsia, lado a lado com Saadi, Jami, Shams e Rumi – este último já mais chegado nas nossas plagas pelas mãos, entre outros, de Marco Lucchesi.
Pois foi lendo Hafez que Goethe teve uma espécie de renascimento. Em 1814 o editor Cotta da cidade de Stuttgart, presenteou o poeta alemão com os dois volumes da tradução integral do Diwan de Hafez feita pelo intelectual e diplomata austríaco Joseph von Hammer-Purgstall, e foi quase como um presente da duty-free: Goethe se encaminhava para as termas da cidade de Bad Berka, para um período de descanso e reflexão, numa época da vida em que se encontrava especialmente melancólico: seus maiores amigos e interlocutores Herder, Wieland e Schiller já haviam falecido havia algum tempo. A vida pessoal de Goethe, com a grave doença de sua esposa, também não ia muito bem. E politicamente a Europa vivia uma estranha calmaria, após a derrota de Napoleão.
“O efeito foi vivo demais, e me senti obrigado a dar minha própria contribuição” – assim Goethe registrou em seu diário do ano de 1815 o efeito fulminante da leitura de Hafez. “Tive que reagir produtivamente, senão não teria conseguido suportar essa poderosa aparição”, anotou na mesma página. Goethe havia encontrado um irmão de letras, anos depois do “acontecimento fortuito” de quando conheceu Schiller, mas desta vez com quase cinco séculos e milhares de quilômetros de distância. E, ainda na carruagem, rabiscou o primeiro de centenas de poemas que formariam o que o estudioso Hendrik Birus chamou de seu “legado lírico”:


Daí jorraram dezenas de poemas que preencheram muitas e muitas folhas, sem muita organização ou subdivisão, até que Goethe publicou alguns num semanário literário em 1816. O Divan ainda não estava concebido como livro, era apenas um jorro de inspiração e diálogo literário com a poesia de Hafez e do Oriente Médio – na verdade, um retorno a uma terra já conhecida de Goethe. Mas a leitura não parece ter causado o efeito esperado, e os leitores confusos não sabiam se estavam lendo poemas inspirados ou traduções do árabe. Eis que Goethe, malandro, não querendo nem resolver nem piorar a confusão, decidiu escrever uma espécie de posfácio aos seus poemas, que acabou se tornando uma enorme seção intitulada Notas e ensaios para melhor compreensão do Divã ocidento-oriental. E essa seção abre com um poema (pessoalmente, o meu preferido) que nos chama para uma viagem ao Oriente e à terra da poesia:



Nessas Notas Goethe dá a saber das leituras que fez, das pessoas com quem conversou, das suas convicções sobre religião, poesia, cultura e também sobre tradução (é ali que se encontra o capítulo Traduções, onde Goethe apresenta sua mais condensada e famosa reflexão sobre a atividade de tradução). E então a primeira edição veio a lume em 1819, em um único volume, e em 1827 sairia a segunda edição, com mais poemas, e já integrada numa edição de obras completas do poeta.
Precedem as Notas doze livros que compõem a parte de poesia do Divã. Livros? Sim, algo como sub-ciclos ou partes do livro. Assim também procediam alguns poetas ou editores das obras de poetas persas, ao agrupar os poemas sob uma temática. Mas esses livros não apenas agrupam os poemas, mas permitem também que criemos conexões entre eles, como entre o Livro do cantor e o Livro de Hafez, que fazem um tributo à poesia e ao poeta persa. Ou entre o Livro das Parábolas e o Livro das Contemplações, que reúnem sabedoria milenar oriental, ocidental e ocidento-oriental. Podemos agrupá-los em trios, como o Livro de Zuleica, o Livro do amor e o Livro da taverna, que tratam da temática amorosa regados a muito vinho e religiosidade. 

O Divã também se permite acessar como um oráculo, no qual se escolhe uma página qualquer e se lê o poema que ali caiu. Essa é uma prática antiga muçulmana, a de espetar uma agulha numa página do Corão ou do Divã de Hafez e ler ali a sabedoria para o dia, como prova da riqueza do livro. O poeta afirma isso numa pequena quadrinha do Livro dos provérbios:



E fica aqui meu convite para o leitor: que abra o Divã ocidento-oriental em qualquer página que queira, pois a viagem começa de qualquer lugar em que estivermos. Ela pode ser difícil, trazer incertezas, apresentar coisas desconhecidas, palavras incompreensíveis, pessoas surpreendentes. Mas ela será transformadora.


Sobre a tradução

A tradução do West-östlicher Divan, que produziu o Divã ocidento-oriental, foi um trabalho de anos e que teve altos e baixos, assim como a própria escrita do Divan. Se a um primeiro olhar o livro parece difícil, insuperável, intraduzível – ou, como disse o comentador Birus, “um livro sob sete selos” –, na medida em que a leitura avança e aproveitamos as pistas que os poemas nos dão, a decifração se torna fácil. É lógico que a fortuna crítica em torno do Divã, existente desde pelo menos o início do século XX, torna a compreensão das cifras dessa poesia muito menos penosa. Assim, tendo acesso aos muitos trabalhos que falam sobre o Divã – em especial os comentários de Hendrik Birus e os livros de Katharina Mommsen – a compreensão dos significantes e dos significados dos poemas não foi complicada.

O grande problema é o signo poético, a junção de significante e significado, fôrma e conteúdo, forma e sentido. Apesar de ser uma obra colada à tradição poética árabe-persa, o Divã não emula as formas clássicas dessa tradição, entre elas o gazel, a cássida e o rubái. Antes, Goethe usa o verso tradicional alemão, o tetrâmetro trocaico (quatro pés métricos com sílabas forte-fraca) na maioria dos poemas, e em alguns casos desvia dessa regra quando quer chamar a atenção para algo. O esquema de rimas também não foge muito do que o alemão já conhecia, e não reproduz a monorrima persa – novamente, a não ser que queira chamar a atenção para algo, como no seguinte poema do Livro da taverna, que parece reproduzir a fala repetitiva de um bêbado:





O verso que se escolhe para a tradução pode ser visto como veneno e remédio: tanto pode dar espaço para vazar toda a expressividade do poema original, dentro das possibilidades da língua de chegada; quanto pode criar restrições, apertos, becos sem saída, saias justas que tornam o trabalho de tradução uma tarefa árdua. Mas assim que se faz a escolha, deve-se arcar com ela até o final. Em minha tradução procurei recriar o poema seguindo o mesmo andamento, mantendo a mesma quantidade de sílabas e, até onde consegui, o mesmo esquema de rimas (o que em muitos casos se revelou mais fácil do que eu esperava). 

Algo, porém, que foi profundamente desafiador e que não resolvi de maneira totalmente satisfatória foram momentos em que versos de cadência masculina e feminina se tornavam significativos. Em outras palavras, versos agudos e graves, que terminam respectivamente em palavra oxítona e paroxítona. No Livro de Zuleica essas cadências têm peso considerável, pois todo esse livro é um grande diálogo entre uma voz masculina e uma voz feminina, e a alternância faz a diferença. Não é uma escolha fortuita ou aleatória: é planejada. Um poema no qual penso que fui bastante bem-sucedido é o seguinte:



Naturalmente alimentei minha tradução com o trabalho de outros tradutores, sobretudo Martin Bidney, que fez uma tradução integral do Divan para o inglês, acrescida de poemas seus como “resposta” à poesia de Goethe. Tive acesso a outras traduções para inglês, espanhol, francês e italiano, e todas elas contribuíram de alguma maneira com a minha versão, seja na compreensão de algum verso aparentemente obscuro, seja na construção do verso em português. De certa maneira, minha tradução é uma obra coletiva, que também é resultado de conversas com colegas de graduação, mestrado e doutorado, e também meus colegas tradutores brasileiros, portugueses, alemães e austríacos que participaram das oficinas Vice-Versa de tradução de 2012 a 2014, nas quais aprendi muito. Não dá para esquecer também o papel de toda a equipe da Estação Liberdade, que leu e depurou todo o trabalho até o estágio em que está.


1 Leaves of grass, na leitura (ainda inédita) de Guilherme Gontijo Flores.
2  Nos Poemas traduzidos da Estrela da vida inteira.





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