O Brasil no Divã
Johann Wolfgang Von Goethe, nascido no dia 28 de agosto de 1749 em Frankfurt, é provavelmente o principal nome da história da literatura alemã. Com 25 anos, publicou o romance Os sofrimentos do jovem Werther, fenômeno cultural que fez do jovem autor uma celebridade literária na Europa.

Foi precursor do romantismo, junto do amigo Friedrich Schiller. Sua vasta obra artística, ladeada por uma carreira como homem da corte em Weimar e por investigações nas ciências naturais, representa uma reflexão aguda sobre o destino humano individual e coletivo na modernidade.

Seu efeito em toda a arte e pensamento europeus no século XIX foi dramático e definidor, tendo Goethe influenciado de Napoleão a Hegel, de Nietzsche a Darwin. Além de Werther, outras de suas obras referenciais incluem Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister [1797], Fausto [1806] e As afinidades eletivas [1809].

Em 22 de março de 1832, Goethe morreu na cidade de Weimar.

A Estação Liberdade tem em seu catálogo dois livros do autor: Os sofrimentos do jovem Werther, já em 9ª edição, e Divã ocidento-oriental, publicado este ano.


 


Daniel Martineschen, responsável pela tradução de Divã ocidento-oriental, escreveu em agosto de 2019 o artigo O BRASIL NO DIVÃ, onde fala sobre a obra de Goethe e a contempla pelo prisma da relação com uma literatura/cultura estrangeira. Martineschen também discute os aspectos relativos à gênese, autoria, recepção e tradução da obra, num mesmo movimento em que tece uma crítica à forma com que Goethe se apropria de uma imagem do poeta persa Hafez e reflete sobre a realização da tipologia tradutória proposta no Divã. Por fim, convida o leitor a refletir a respeito da identidade nacional brasileira a partir do que chama de “estrangeiro transplantado”.


O tradutor também escreveu para o Blog da Estação Liberdade contando um pouco sobre o processo de tradução e sua ligação com Goethe. 

“A tradução do West-östlicher Divan, que produziu o Divã ocidento-oriental, foi um trabalho de anos e que teve altos e baixos, assim como a própria escrita do Divan. Se a um primeiro olhar o livro parece difícil, insuperável, intraduzível — ou, como disse o comentador Birus, “um livro sob sete selos” —, à medida que a leitura avança e aproveitamos as pistas que os poemas nos dão, a decifração se torna fácil. É lógico que a fortuna crítica em torno do Divã, existente desde pelo menos o início do século XX, torna a compreensão das cifras dessa poesia muito menos penosa. Assim, tendo acesso aos muitos trabalhos que falam sobre o Divã — em especial os comentários de Hendrik Birus e os livros de Katharina Mommsen — a compreensão dos significantes e dos significados dos poemas não foi complicada.” Leia o texto completo.


A Estação Liberdade preparou cinco perguntas inéditas para Daniel Martineschen. Nesta pequena entrevista, ele faz um link de Goethe com o Brasil de 2020, além de nos contar um pouco sobre sua rotina. Confira! 


E.L: Neste artigo sobre o processo da tradução, você faz um trocadilho no título: "O Brasil no Divã". Para além da brincadeira com as palavras, existe alguma outra relação que você faria entre a leitura de Goethe e a poesia em geral como forma de manter a sanidade no Brasil de 2020?

D.M: No artigo tentei, ainda que de maneira não muito extensa, abrir uma reflexão sobre nossa identidade nacional, que foi construída de maneira tão atropelada e violenta ao longo dos cinco últimos séculos. Sim, coloquei "no Divã" porque o Divã de Goethe nos convida a olhar com carinho e cuidado para nossas identidades, nossa xenofobia e nossa própria literatura; mas também vislumbrei "deitar no divã" no sentido de nos deixarmos levar por essa poesia transcontinental, também pensando em nos permitirmos olhar para nós mesmos, como numa sessão de psicanálise.

Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro é um livro que, a meu ver, trata da identidade nacional brasileira de maneira muito sincera — talvez mais fidedigna que muitos tratados de sociologia. E com isso reforço que a literatura é um meio de trabalhar o mundo, a sociedade e as relações humanas, pela via da arte e da ficção, da polissemia e do pluralismo de interpretações. A poesia talvez seja o melhor remédio para a brutalidade, e acho que a arte pode nos ajudar a atravessar os tempos insanos que vivemos.

 

E.L:
O Divã trata do espelho entre as culturas de Hafez e de Goethe. Colocando neste triângulo o Brasil de hoje, quais "lições" ou "ideias” você gostaria de roubar da Pérsia medieval ou da Alemanha romântica que você acha que poderiam ajudar o brasileiro e a brasileira hoje em dia?

D.M: Da poesia persa da "era de ouro" (de Hafez, Saadi, Rumi, etc) penso que encarar a vida e a religiosidade com maior leveza poderia nos ajudar a desfazer muitos nós e traumas de nossa sociedade. De maneira similar, a poesia de Goethe apela ao humanismo que contém elementos que nos mantêm todos conectados: a solidariedade, o amor, a Natureza, a espiritualidade. A poesia do Divã ocidento-oriental também nos dá belos puxões de orelha, pra repensarmos de onde vem a literatura e a civilização, percebermos que a Europa não é o centro do mundo e que a modernidade deve muito a muitos povos da antiguidade — não apenas aos gregos e aos romanos.
 


E.L:
Você pode falar um pouco mais sobre essa ideia do brasileiro como um "estrangeiro transplantado"? Como você vê isso no dia a dia, ou na sua vida, ou então na vida de um Brasil mais profundo?

D.M: Não tenho a pretensão de fazer nenhum tipo de análise sociológica profunda. Mas sempre penso muito sobre o que é ser brasileiro. Pessoalmente, não sei definir o que é ser brasileiro. E sinto que como povo não temos identidade. Isso poderia ser algo bom se com isso não fosse solapada a diversidade das inúmeras comunidades e apagado o passado dos povos originários e ancestrais. Mas o processo que acontece desde a invasão portuguesa de 1500 foi fundado, sobretudo, no esmagamento e no apagamento. O termo "estrangeiro transplantado" é do próprio livro de João Ubaldo, quando o personagem Amleto Ferreira considera o "dever histórico" do europeu em domesticar e dominar a massa de gente negra e indígena na América. Eu conecto essa ideia também com minha experiência enquanto brasileiro da região Sul, do Paraná. Aqui acontece algo muito curioso: a maioria das pessoas não se enxerga como latino-americanas, mas sim como europeias, pois seriam descendentes de povos brancos sem relação com indígenas ou negros. Mas veja que dissonância cognitiva! Vivem no meio do continente latino-americano, têm muitas vezes antepassados negros e indígenas, mas não aceitam que esse passado faça parte da sua herança genealógica. Negam a realidade de a maioria da população brasileira ser negra.

E conheço gente que tem o disparate de se considerar "italiano puro", porque em sua família seus pais e avós se casaram apenas com descendentes de italianos — como se isso fosse um trunfo, uma qualidade positiva, algo de que se "gabar". Nega-se toda a herança cultural africana que o Brasil tem, atribui-se ao genocídio indígena o status de normalidade (os europeus eram "desbravadores"), e a branquitude se imprime como um horrível véu de não latinidade.
 


E.L:
Uma vez, quando ainda se podia pensar em evento presencial para lançamentos de livro, você comentou que um lançamento do Divã não poderia ser feito sem comida e bebida. Como esses prazeres sensuais aparecem no livro? Você se considera um bom garfo/taça?

D.M: No Divã, sobretudo é o vinho que está presente, em especial no Livro da Taverna, mas também em outros livros, e ele age como elemento desafiador da ordem estrita da religião. Goethe herdou isso de Hafez, que em um de seus poemas diz literalmente "encharque de vinho o tapete de oração" — ou seja, leve a vida mais leve. Acho que não podemos viver sem um pouco de inebriamento, ainda que sempre dentro da moderação...

A comida não aparece tanto no Divã, mas acho que com comida tudo fica mais caseiro e aconchegante, não? A refeição muitas vezes é um momento de conforto — e muitas vezes é o único espaço de liberdade que temos no nosso dia. Enfim, por que não ficar alegre e de barriga cheia pra conversar sobre um livro legal, né?
 


E.L:
Muita gente tem curiosidade sobre a rotina das pessoas que fazem o mercado editorial. No seu caso, como tradutor e pesquisador autônomo, como é sua rotina de trabalho? Como é um dia típico do Daniel tradutor? De que maneira essa rotina foi afetada pela pandemia/isolamento social?

D.M: Meu dia típico como tradutor envolve tradução em vários momentos. Pela manhã, em geral respondo e-mails de clientes e me dedico às traduções agendadas para fazer no dia. À tarde consigo me dedicar mais a leituras e projetos de tradução literária, seja com editoras, seja em projetos pessoais. Quando eu atuava como tradutor técnico e jurídico, o dia acabava sendo preenchido com essas traduções, não tão complexas como a literária, mas igualmente trabalhosas.

Recentemente comecei a trabalhar como professor na UFSC, mas a pandemia interrompeu totalmente as atividades letivas. A atividade de pesquisa, porém, não parou, e mesmo de casa continuo pesquisando, escrevendo, participando de eventos (muitos estão acontecendo on-line). A universidade não parou, apesar do que se tem dito...

Meu trabalho como tradutor juramentado também foi severamente afetado, pois com o fechamento de fronteiras devido à pandemia todos os intercâmbios acadêmicos foram suspensos, e também os processos de tirar passaporte europeu foram postergados.




O Divã ocidento-oriental é o resultado do movimento de Goethe em direção ao Oriente, "de onde há milênios têm chegado a nós tantas coisas grandiosas, boas e belas". Este desejo teve sua gênese no encontro do poeta alemão com o Diwan "coletânea", "ciclo" do persa Hafez. Reunindo mais de 500 gazéis (poemas curtos e líricos, de temática mística ou amorosa), o Diwan de Hafez circulava pelo Oriente desde o século XIV.

Quando a primeira tradução integral deste conjunto chega a Goethe, ele é arrebatado por sua leitura e tomado de uma necessidade de responder produtivamente à "poderosa aparição" de Hafez, a quem Goethe passou a considerar um "gêmeo". O alemão, então com 64 anos, decide renovar-se como criador e empreender sua viagem literária rumo ao Oriente. Por meio de leituras, pesquisas e traduções, o poeta se transplanta ao antigo mundo das Mil e uma noites, às civilizações dos livros sagrados e suas tradições poéticas. O Divã ocidento-oriental é o relato dessa imersão.

Esta tradução é a primeira vez em que a íntegra da poesia (aqui em versão bilíngue) e da prosa que compõem a obra aparecem conjuntamente em português. O trabalho foi objeto de doutorado do tradutor e pesquisador Daniel Martineschen. O tradutor também assina um posfácio que conta mais sobre a escrita do
Divã por Goethe, a história das traduções da obra, e a história da presente tradução. 






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