Romance distópico de Yoko Ogawa, chega ao Brasil
A polícia da memória, finalista do International Booker Prize 2020 e do National Book Awards 2019, foi traduzido em diversos idiomas e, mais uma vez, marca o talento da escritora contemporânea Yoko Ogawa.

Neste romance que chega agora ao Brasil, pela Estação Liberdade, em prosa ao mesmo tempo insólita e sensível, o leitor é conduzido ao mundo das memórias perdidas. Uma ilha é vigiada pela "polícia secreta", que busca e elimina vestígios de lembranças. Objetos, espécies e até famílias inteiras somem sem deixar traços, sem que as pessoas sequer se atentem, ou percebam os desaparecimentos, pois as recordações furtivamente também já se foram.

Na trama, uma escritora tenta manter intactos resquícios de histórias, de algo que possa permanecer. Não é fácil, já que tudo ao redor desaparece, e ela não pode contar sequer com a própria memória.
O leitor é convidado, instintivamente, a acessar o seu próprio arcabouço de lembranças e percorre uma jornada de recordações que também gostaria de preservar. Algo que tem se tornado familiar na atualidade, e a todos que têm criado um novo mundo, já que o anterior, pré-pandemia, não mais existe, e nunca será como antes.

Acessar as memórias é acessar, também, o que criamos e o que se mistura ao real. E ler A polícia da memória é embarcar no mais profundo do ser. Há uma pergunta que circunda toda a narrativa: se pudesse, o que você preservaria intacto, e não perderia da memória?


SOBRE A AUTORA

Yoko Ogawa nasceu em Okayama, Japão, em 1962. Sua vocação leitora foi despertada precocemente por clássicos infantis, graças a um sistema de assinatura de livros de que a família dispunha. Gosta de citar O diário de Anne Frank como uma referência decisiva para perceber a escrita como via possível e necessária de autoexpressão. Estudou escrita criativa e publicou diversos livros, entre ficção e não ficção. A autora vive atualmente em Ashiya, província de Hyogo -- nas proximidades de Kyoto.
Pela Estação Liberdade, a autora publicou O museu do silêncio (2016) e A fórmula preferida do Professor (2017), obra que foi vertida para o cinema, pelo diretor Takashi Koizumi, ex-assistente de Akira Kurosawa.
 

TRECHOS

"-- O que desaparece é a fotografia, não é meu pai nem minha mãe. Claro que não vou esquecer o rosto deles.
-- Pode ser só um pedaço de papel, mas nele fica guardado algo muito profundo. Luz, vento, ar, o amor e a alegria das pessoas retratadas, seus pudores, seus sorrisos. Você tem de guardar essas coisas. É para isso que se tiram fotografias.
-- Sim, sei disso. Eu adorava minhas fotos. Cada vez que olhava para elas, ressuscitavam minhas mais queridas lembranças.
Sentia saudades, tristeza, um aperto no coração... As fotografias eram a bússola mais confiável que eu tinha para andar na floresta das minhas lembranças, das minhas parcas lembranças. Mas agora preciso renunciar a tudo isso. É desolador e doloroso perder essa bússola, mas não sou capaz de impedir um sumiço." [p. 114]
 
"Enquanto escutava atentamente, tive a impressão de que lá no recôndito do pântano sem fundo do meu coração, lá para onde vão as memórias das coisas que somem, algo estava sendo revolvido, e vinha boiando em direção à superfície." [p. 174]
 
"Quando me dei conta de que não me lembrava mais de como minha voz tinha sido um dia, fiquei um tanto desconcertada. Vivi muito mais tempo com voz do que sem, e não me conformava de ter esquecido tão rápido. Talvez fosse infundada minha crença, baseada no senso comum, de que ela me pertencia por direito, dada a facilidade com que minha voz me foi arrancada. Afinal, se alguém pegasse meu corpo e o esquartejasse, misturando em seguida minhas partes com as de outros, não seria tão simples identificar, na miscelânea, a minha córnea esquerda. É a mesma coisa. Minha voz, neste momento, está enroscada, muda, em uma engrenagem interna da ! má quina." [p. 196]

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