O resgate de novas reflexões

Obras que ilustram a densidade das reflexões atuais sobre o Holocausto
 
Thais Lancman
 

O amadurecimento da memória do Holocausto, passados julgamentos, reparações financeiras, décadas de pesquisas acadêmicas e o inevitável falecimento de sobreviventes e testemunhas, não parece encerrar algumas questões. Pelo contrário, propõe algumas perguntas que se mostram importantes Dois lançamentos da editora Estação Liberdade ajudam a compreender que questões são essas e como elas se colocam hoje em dia: Os 948 Dias do Gueto de Varsóvia, de Bruno Halioua e Diário Tardio, de Max Mannheimer. O primeiro é uma costura de documentos, relatos e diários que reconstrói a sequência de violações de direitos daqueles que viveram no gueto, e outros que foram conduzidos até ele até chegar à extinção da vida judaica na capital do país que, até então, reunia a maior população de judeus na Europa, passando pela resistência armada que se impôs aos nazistas e lutou bravamente.


Halioua utiliza diversas fontes para contar a história do gueto de Varsóvia, em especial o Arquivo Ringelblum, os diários do chefe do Conselho Judeu, Adam Czerniakow e do pianista Wladyslaw Szpilman (interpretado no cinema por Adrien Brody, no filme de Roman Polanski). A história oficial e a assepsia de um cronograma são, então, permeadas pelo elemento humano.


Dois pontos sensíveis interrelacionados se fazem presentes em Os 948 Dias do Gueto de Varsóvia. O primeiro são os esforços de moradores do gueto e alguns que conseguiram fugir ou transitar pela Europa durante esse período em alertar a comunidade internacional sobre o que estava acontecendo ali e nos campos para onde os moradores do gueto estavam sendo deportados. O livro mostra a frustração daquelas pessoas, que se sentiam abandonados e ignorados ao dizerem como a fome, o tifo e a violência aniquilava os judeus de Varsóvia, algo que é reconhecido por diversos países, por exemplo, em museus que contam a história do Holocausto mundo afora, porém sempre de maneira atravessada ou apologética. É chocante a carta que uma mulher afirma ser a última que enviaria a seus conhecidos na Palestina, depois seguidos envios resposta. É possível que judeus que, a essa altura, já viviam o ideal sionista, quisessem de certa maneira cortar relações com aqueles que ficaram na Europa, vistos como o oposto do judeu forte e revolucionário que eles cultivavam ali com uma nova nação.


A visão das vítimas do Holocausto como passivos, que foram para as câmaras de gás “como ovelhas para o matadouro” há muito foi rejeitada, principalmente com a ampla divulgação dos processos pelos quais as vítimas do Holocausto passaram, a contínua desumanização que levou ao esgotamento. Hoje, existe uma compreensão maior – e muito bem ilustrada na obra de Halioua – das consequências de um longo período de privações e violências. Ao mesmo tempo, ocorre que em Os 948 Dias do Gueto de Varsóvia nos deparamos com a estupefação de moradores do gueto diante da aceitação do destino por parte de conhecidos e vizinhos, ao seguirem sem relutar para a Umschlagplatz, praça de onde seguiam em trens para os campos. O fato de não esconder que até mesmo moradores do gueto falavam sobre essa passividade sinaliza o quanto Os 948 Dias do Gueto de Varsóvia é uma obra sincera, sem cultivar heróis ou santos, buscando manter o frescor do testemunho, minimamente influenciado por leituras posteriores.


Do ponto de vista narrativo, essa ideia repetida dos judeus como ovelhas constrói no levante armado organizado por jovens de diversos movimentos e grupos políticos, nos momentos finais da história do gueto, uma espécie de clímax do livro. Justamente o evento exemplar de rejeição da aceitação servil do extermínio, Halioua organiza para o leitor desde a decisão em fazer o levante, o tráfico de armas, os treinamentos, os embates com os nazistas até o sufocamento da insurreição judaica. Não à toa, pois como colocado nas primeiras páginas do livro, a ideia da obra surgiu em uma visita a um kibutz em Israel fundado por sobreviventes do Levante, entre outros.


Diário Tardio, de Max Mannheimer, até por se tratar de um relato pessoal, e não uma combinação de documentos, reúne em uma vida diversas experiências do Holocausto, tomando como ponto de partida a ascensão nazista, a perda de bens e antigos colegas não judeus se tornando inimigos. A história de Mannheimer acaba por completar a do livro de Halioua, pois, saindo de Auschwitz, ele foi um dos encarregados pelos nazistas de limpar o que havia restado do Gueto de Varsóvia, já esvaziado e destruído. A visão que Mannheimer tem do que restou da vida judaica ali, e de certa forma do que restava dele mesmo e de seu irmão Edgar, único familiar que sobreviveu, é também um posfácio sombrio do material reunido por Halioua.


O percurso de Max Mannheimer no Holocausto — passando por Theresienstadt, Auschwitz, Varsóvia e Dachau — é por si só relevante. Isso porque, embora bem consolidada, a memória do Holocausto é muito atrelada a Auschwitz. Basta olhar em uma livraria qualquer a quantidade de títulos que incluem o nome do campo, associado a cercas de arame farpado. Uma literatura mais comercial e questionável se mistura a obras-primas como Maus, de Art Spiegelman. Em Diário Tardio, Auschwitz é uma etapa entre outras, de forma que, tragicamente, Mannheimer seja capaz de traçar um panorama do que foi o Holocausto. Pois não há um excesso de literatura sobre o Holocausto se considerarmos apenas aquelas que fornecem mais elementos para a compreensão do cotidiano das populações judaicas sob o jugo nazista e nos campos, e que conseguem se inserir nos debates atuais sobre o tema. Para além de obras paradigmáticas, como O Diário de Anne Frank, há ainda um universo a ser conhecido, ainda mais considerando o envelhecimento das vítimas do Holocausto e o desenvolvimento de pesquisas sobre o tema e a permanência do negacionismo e do revisionismo histórico.
 

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