TOPOGRAFIA IDEAL PARA UMA AGRESSÃO CARACTERIZADA

Argel. Marselha. Paris. E depois, os infindáveis corredores do metrô parisiense, que enclausuram o personagem central de Topografia ideal para uma agressão caracterizada. Assim é que a capital francesa é posta em cena nesta narrativa, que faz pensar no mito literário de Paris, este “mito moderno”, como disse Roger Caillois. Um mito de diversas facetas, entre as quais a de “cidade-luz”, expressão imortalizada pela memória coletiva, e segundo a qual a capital francesa aparece como um concentrado de esplendores: cidade da cultura e das artes, da revolução, do amor, das canções, dos prazeres mundanos.

Mas a perspectiva da representação de Paris aparece aqui como que invertida, pois a topografia parisiense segundo Boudjedra reduz a cidade aos corredores e plataformas do metrô: lugar subterrâneo, angustiante, dédalo inextricável levando a direções diversas. Região de obscuridade simbólica por excelência, pela qual se constrói a imagem de uma Paris antípoda do mito da “cidade-luz”. Tal inversão se completa pelo fato de a narrativa por em cena ainda a relação de um homem triplamente despossuído de si mesmo — estrangeiro, imigrante e analfabeto — com a cidade de Paris. E como se não bastasse, uma Paris transformada em palco do ódio racista. O resultado é uma espécie de clichê fotográfico em negativo.

Topografia ideal para uma agressão caracterizada é um texto da errância e do extravio levados ao paroxismo. Ao sentimento de perda no espaço labiríntico, vem juntar-se o de perda em relação ao tempo. E nisso o estilo de Rachid Boudjedra é de uma eficácia impressionante: ele conjuga as constantes mudanças de foco narrativo — quem é de fato o narrador? — com o manejo hábil na construção de frases intermináveis, multivocais,  entrecortadas por parênteses. Ao que acrescenta uma expressiva maestria na utilização de diferentes tempos verbais que projetam o leitor do passado para o presente, do antes para o depois, incessantemente. A oscilação deliberada e sistemática entre diferentes vozes (narrador, personagem central e outros) e tempos resulta em mudanças contínuas de planos de consciência.

O mito é aqui visitado às avessas, na pele do personagem extraviado nas tripas urbanas do metropolitano. Daí, aliás, a universalidade e atualidade desta narrativa em que o ódio da alteridade explode na confrontação de dois mundos: de um lado, o excluído, o analfabeto em busca de trabalho e sobrevivência e, de outro, a cruel e opulenta urbe ocidental, “cosmos lingüístico” (Walter Benjamin) repleto de imagens, ruídos, signos, enfim, de tudo o que o estrangeiro abominado não pode decifrar. 


SOBRE A COLEÇÃO LATITUDE

Nossa intenção é dupla: abrir uma janela atualizada e dinâmica, dentro do enfoque multicultural que norteia a Estação Liberdade, para o que há de melhor na literatura dos diversos países e regiões que contribuíram para o florescimento desta importante língua literária e, ao mesmo tempo, oferecer um espaço para autores, obras e editoras nem sempre contempladas pela lógica do mercado, seja dentro ou fora do Brasil. A coleção conta com o apoio dos Ministérios das Relações Exteriores da França, da Suíça e do Canadá para alguns títulos.

                                                                                                   


RACHID BOUDJEDRA

Rachid Boudjedra nasceu em 1941 em Aïn-Beïda, Argélia. Sua obra ocupa importante espaço na literatura produzida após a guerra de libertação de seu país (1954-1962). Escreveu sempre em francês, mas atualmente se dedica também à produção em árabe. Desde seu primeiro romance, La Répudiation (1969), Boudjedra volta seu olhar para as contradições da Argélia independente — nação em que ainda é notável o embate entre a modernidade e o respeito à tradição. Preocupação constante em seu trabalho são as condições do imigrante magrebino na Europa, especialmente na França, como ocorre no presente Topografia ideal para uma agressão caracterizada. Fortemente influenciado pelo nouveau roman francês, ganhou notoriedade por sua escrita sofisticada. Além de romancista, Rachid Boudjedra é professor, poeta, ensaísta, autor de teatro e cinema, tendo assinado o roteiro do notável Crônica Dos Anos de Brasa (Palma de Ouro em Cannes, 1975), dirigido por Mohammed Lakhdar Amina. Ministrou aulas em diversas universidades do mundo árabe e europeu. Em 1987, uma fatwa islâmica com sentença de morte foi emitida contra o escritor, por considerarem que sua obra representa uma afronta aos fundamentos do Islã. Entre suas obras mais recentes, constam La Fascination (2000), Les Funérailles (2002) e L’Hôtel Saint Georges (2007).  



Livro
Tradutor Flávia Nascimento
Formato 14x21x1 cm
Páginas 232
ISBN 978-85-744-139-5

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