Yôkai: das artes para o mangá

Texto escrito por Adriane Carvalho


O sobrenatural tem lugar importante nas artes japonesas desde a antiguidade, aparecendo nas pinturas, nas lendas e narrativas de cunho folclórico, e se mantém relevante nos dias atuais, tendo destaque na cultura popular. Fascinante para muitos ocidentais, uma de suas manifestações mais conhecidas são os yôkai. A palavra yôkai é composta pelos ideogramas o primeiro, , pode ser traduzido como “sedutor” ou como “aparição”, “monstro” e tem o sentido de “estranho”, “misterioso”. Os mais conhecidos costumam ter aparência animalesca ou humanoide, como o Nekomata, um tipo de yôkai com aparência de gato e a Yuki-onna, a mulher da neve, que, como o nome indica, possui aparência humana. Yôkai não são apenas os monstros que costumamos ver nos mangás e animes como InuYasha, de Rumiko Takahashi ou Nura – a ascensão do clã das sombras, de Hiroshi Shiibashi, por exemplo, mas, também, fenômenos estranhos e inexplicáveis, desde os mononoke, espíritos vingativos que causavam doenças e sofrimentos às pessoas, como aquele visto nas clássicas Narrativas de Genji (séc. XI), de Murasaki Shikibu (imagem 1), até os tsukumogami, objetos comuns que, após existirem por cem anos, “desenvolvem” um espírito e se tornam criaturas sentientes (imagem 2). 

Vinculados ao folclore, era comum que estas criaturas e aparições estivessem ligadas a uma região específica do Japão, mas, a partir do século XVIII, obras como o livro ilustrado Gazu hyakki yagyô (Ilustrações do cortejo noturno dos cem demônios), que se assemelhava a uma enciclopédia sobre yôkai, escrito e ilustrado por Toriyama Sekien, ajudaram a apresentar as criaturas locais para um público mais amplo (imagem 3). Em Mil anos de mangá, Brigitte Koyama-Richard nos explica como as histórias de yôkai começaram a circular entre a população menos abastada também através da produção editorial. Antes do período Edo (1603-1867), a produção de obras ilustradas como os rolos de pintura emakimono era acessível apenas aos mais ricos, mas o desenvolvimento de técnicas de impressão facilitou e agilizou a publicação em série de livros ilustrado, possibilitando que as classes menos privilegiadas também tivessem acesso a vários tipos de livros e cartazes impressos. Com isso, o trabalho de artistas como Toriama Sekien e Kawanabe Kyôsai, que ilustrou sua própria versão do temido cortejo sombrio dos yôkai em Kyōsai hyakki gadan (“Ilustrações dos cem demônios, de Kyōsai”), pôde circular entre a população, o que ajudou a cristalizar a imagem dessas criaturas na cultura popular e, séculos mais tarde, acabou influenciando os quadrinhos e desenhos animados japoneses.

A influência dos ilustradores do período Edo sobre os mangás é visível em muitas obras, mas um dos mais conhecidos e admirados criadores a se inspirar nas antigas imagens de yôkai é Mizuki Shigeru, criador de Gegege no Kitarô (imagem 4) e de vários outros mangás que tratam do sobrenatural. Sua admiração pelas obras do período Edo era tamanha que, como nos mostra Koyama-Richard em seu capítulo sobre o mangaká, o motivou a criar sua própria versão da famosa série de ilustrações ukiyo-e de Andô Hiroshige, As cinquenta e três estações de Tôkaido, chamada de As cinquenta e três estações de Yôkaidô, com a participação dos personagens de Gegege no Kitarô.

Assim como as ilustrações de yôkai feitas pelos artistas do período Edo influenciaram Mizuki, a obra deste impactou as gerações seguintes de criadores de mangá que cresceram lendo suas histórias. O tempo passou, mas os yôkai continuam em seu cortejo noturno, agora pelo mundo dos mangás e animes e, assim, continuam assombrando e divertindo as pessoas do Japão e de todo o mundo.

 

Imagens de referências


 



 







Figura 3 Imagem de um nekomata em
Gazuhyakki yagyô, de Toriyama Sekien. 




Figura 4 Capa de um volume de
Gegege no Kitarô, de Mizuki Shigeru.




Adriane Carvalho é mestre em língua, literatura e cultura japonesa pela USP. 

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