Uma viagem ao fim do exílio

Um romance sobre exílio, liberdade, amor e afeganidade


Todo ser humano é um carregador de água. Alguns de nós, em regiões muito secas do mundo, com baldes, carregam-na de uma nascente distante até as casas de uma cidade. Mas também todos nós, mesmo que não cheguemos a esse extremo da ação, carregamos em nossas células grande quantidade do líquido vital. Com essa premissa, embora velada a princípio, o autor afegão Atiq Rahimi narra em seu novo romance, Os carregadores de água, agora publicado pela Estação Liberdade, duas histórias paralelas que ocorrem em torno de um acontecimento real do dia 11 de março de 2001: a destruição das estátuas dos Budas de Bâmiyân pelo Talibã.
Uma das histórias é a de Yûsef, um afegão que trabalha em Cabul justamente carregando água em seu odre. Com ele, os leitores acompanham a miséria, o envelhecimento de um corpo castigado pelo mundo, e ao mesmo tempo a descoberta desse corpo em prontidão para amar e para matar. Sua tarefa de repetidamente levar e trazer compara-se à de Sísifo, de cujo mito Yûsef não faz ideia. A ignorância, no entanto, não o impede de agir, assim como a ignorância dos desejos de seu corpo também não o impede de buscar a satisfação, a floração do que se mantém há muito reprimido e o seu verdadeiro propósito para além da vida mecânica.
Yûsef é crucial para que o quarto elemento possa integrar a totalidade de um território onde a terra se levanta o tempo todo em forma de poeira na secura do ambiente, onde o ar serve de meio para que voem as balas das kalashinikovs e das demais armas, onde o fogo explode o que ainda resta de criação e construção humana. Ele, a despeito de sua importância, vive à beira da solidão, sem família a não ser por sua cunhada, mulher de uma presença oculta, senão apagadiça. Ele também trava relações com um hindu convertido ao budismo, que se porta como seu guia, e com os soldados talibãs, que o estão sempre ameaçando tácita e também explicitamente.
A outra história é a de outro afegão, Tom, que entretanto vive no exílio há muitos anos, na França. Na manhã do 11 de março de 2001, ele acorda decidido a deixar para trás sua esposa e sua filha e ir de carro a Amsterdã para se encontrar com outra mulher, Nuria. Esta última é tão oculta quanto a mulher da história paralela, a cunhada de Yûsef. Nuria chega a ser fantasmagórica, talvez por sua própria natureza, ou talvez porque tudo que envolve a narrativa de Tom é em essência fantasmagórico. Ele sofre de paramnésia, distúrbio de quem se vê constantemente em déjà vu, e assim se confunde com o tempo, estando às vezes no futuro, às vezes no passado, às vezes pairando fora de seus limites. Um exilado, que distante de sua terra e de sua afeganidade (Tom é uma ocidentalização de seu verdadeiro nome, Tamim), tenta da maneira que pode se desdobrar para resolver o conflito de quem ele realmente é.
Atiq Rahimi escreve com uma prosa poética essas duas histórias tão repletas de realidade crua e mundana. E com essa mescla produz algo novo, que só existe em seu romance, mas que a partir dessa existência abre a possibilidade para que a novidade esteja não só no livro, mas também no mundo. Quando, por exemplo, o narrador explica que as palavras “olho” e “fonte” têm a mesma origem no persa afegão, respectivamente tchashm e tchashma, abranda-se a diferença entre lágrima e água para beber. Em outras palavras, tornam-se mais próximas a consequência dos sofrimentos e a matéria capaz de dar fim ao sofrimento da sede. Aprendemos algo com isso.
Apesar de as duas narrativas jamais se cruzarem, não há dificuldade em perceber logo por que são elas as escolhidas para serem contadas. As questões mais relevantes do livro como um todo estão em cada uma delas: o exílio, a liberdade, o amor, a memória e a destruição dela, a afeganidade. E, mesmo que não sejamos afegãos, conseguimos nos identificar com ambas as histórias, ou pelo menos nos compadecer diante delas, sobretudo depois do que acontece, neste exato instante, no Afeganistão, com a retomada do poder pelo Talibã. Nossa identificação enquanto leitores, ou nosso compadecimento, talvez se dê porque a tragicidade dos oprimidos desperta naturalmente esses tipos de sentimentos no ser humano, mas talvez se dê por sermos todos, afinal, carregadores de água em cada uma de nossas células.

Título: Os carregadores de água
Autor: Atiq Rahimi
Tradução: Jennifer Queen
Ilustração de capa: Sérgio Fingermann
ISBN: 978-65-86068-51-1
Formato: 14 x 21 cm | 256 páginas



TRECHOS

“Você não sabe mais se sonha ou se pensa. Seu avô, em seu lirismo inimitável de afegão, o teria comparado àquele pássaro da meia-noite que, um olho aberto para vigiar, outro fechado para dormir, uma asa virada para o céu, outra virada para a terra, patas presas ao único galho seguro da árvore, onde fez seu ninho, sonha com outro lugar.” [p. 14] 

“O carregador de água se cala, pensando no comerciante hindu Lâla Bahâri — será que ele vai aguentar? Até ontem de manhã, ele nem acreditava nisso, julgando a ameaça contra as estátuas de Buda uma chantagem política. Em todo caso, é o que ele esperava. Ele queria morrer ao pé do grande Buda, o Vermelho, Sorkh beut. Mas eis aqui o grande Buda, morto a seus pés.” [p. 54]

“A sorte está lançada, não há mais volta. A vida é como a água, segundo um ditado que sua mãe repetia com frequência. Corre no sentido da ladeira e não deve ser revertida, senão levará você com ela ou estagnará. Deixe-se então levar em direção à Holanda. Rina ficará onde está. Ela não gosta de queimar nem de derreter. Vai se contentar com o que lhe resta: a filha, o apartamento, as pequenas coisas da vida, e é tudo. Como normalmente, não trabalhará fora de casa, mas fará baby-sitting a domicílio. Tem muita habilidade com os pequenos” [p. 76] 




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