Texto de Fábio
Fujita
No início de 2016, uma lista proposta pelo site Estante Virtual com aqueles que seriam os “dez livros essenciais da literatura japonesa” bombou nas mídias sociais. Como qualquer lista, as ausências “inaceitáveis” deram mais pano para manga do que propriamente as escolhas que compunham o top 10. Entre as omissões sentidas, a de Natsume Soseki foi uma delas. Com uma legião de leitores vorazes por suas obras, Soseki foi de fato muito mais que um “escritor importante”: seu delirante Eu sou um gato, obra de estreia publicada em 1905, é uma leitura que surpreende até hoje; Botchan, escrito no ano seguinte, também consegue preservar uma espécie de frescor, como se antecipasse o tipo de literatura confessional que caracteriza estes novos tempos blogueiros.
Confessional porque é conhecida a malsucedida experiência docente de Soseki junto a uma turma de estudantes secundaristas na ilha de Shikoku, exatamente o local onde ele ambienta a trama de Botchan, que acompanha a cruzada de um professor recém-formado contratado para lecionar pela primeira vez. Sendo de Tóquio, ele tem de se deslocar ao interior pelo novo emprego. Pronto: o rapaz da capital logo se torna aos olhos dos alunos o caipira às avessas porque, não bastasse seu sotaque toquiota ser uma novidade – ridícula – à audição da estudantada provinciana, a diferença de repertório vocabular é oportuníssima para alimentar os conflitos. O aluno insolente acusado de sabotar a cama do professor com um enxame de gafanhotos finge não saber do que o mestre está falando, afinal, o garoto conhece o inseto em questão como “saltão”. O que seria “gafanhoto”?
Esse personagem do professor de
personalidade geniosa, que vocifera frente à pilhéria que seus discentes se esbaldam
em lhe dirigir, denota paradoxalmente a sutileza com que Natsume Soseki propõe
sua composição psicológica. O professor não passa, no fundo, de um
pós-adolescente, um rapazola ainda tateando a maturidade que sua vida anterior
não lhe proporcionara. Tendo vivido recluso até então, alheio a qualquer
círculo social, ele não desenvolveu o traquejo necessário para lidar com os
menores problemas do dia a dia. Mais: demonstra uma placidez existencial
bovina, sem ambições de longo prazo, alguém que se formou em matemática por
acaso, apenas para ser formado em alguma coisa.
Desse modo, desponta aos olhos do
leitor como o típico anti-herói: a despeito de ser o narrador da história, não
torcemos por ele, não nos afeiçoamos a ele, não nos sensibilizamos por ser
vítima de bullying dos alunos, porque
ele também tem reações e comportamentos infantis e contraditórios. A aura de
superioridade cosmopolita com que desembarca na ilha – ele logo chama de
“imprestável” a criança que não sabe lhe informar onde fica a escola – não
demora a esfarelar, notoriamente ao se ver incapaz de resolver uma questão de
geometria levantada por um aluno. “Ele não sabe, ele não sabe”, exulta a classe.
Há muito humor em Botchan, em especial nas passagens em
que o nosso mestre é flagrado em restaurantes locais devorando tigelas de lámen
e tempurás; entre atônitos e perplexos, os estudantes veem aquele glutão
insaciável como um ser de outro planeta. Mas não se deixe enganar: não há
superficialidade no texto de Soseki, mas camadas de significados. Rimos das
reações explosivas do personagem, mas um riso contido, quase nervoso, talvez
por nos identificarmos, mesmo de forma inconsciente, com alguns dos sentimentos
– negativos – que o personagem não consegue reprimir: o ressentimento, a ira, a
angústia, o desencanto. Botchan é,
portanto, uma leitura bem mais complexa do que “o relacionamento difícil entre
professor e alunos” que sua sinopse possa sugerir: a falibilidade de seu
protagonista é reveladora da condição humana. O que não é pouco. Daí que, com
todo respeito às listas dos outros, é “Botchan
e mais nove” nos meus japoneses essenciais.
Fábio Fujita é responsável por diversas preparações e revisões dos livros da Estação Liberdade