No dia 16 de abril deste ano, a Justiça
italiana deu início ao processo de difamação, movido pela primeira-ministra de
extrema-direita da Itália, Giorgia Meloni, contra o filólogo, historiador e
filósofo Luciano Canfora, por tê-la chamado de “neonazista na alma”.Canfora, de 81 anos, é reconhecido e admirado
no mundo todo por seu trabalho sobre democracia e poder. Seus estudos se
distinguem pela abordagem multidisciplinar da Antiguidade.
Ele diz estar calmo em relação a sua fala, que foi proferida durante um debate escolar em Bari, sul da Itália, em abril de 2022. Com julgamento marcado para o próximo 7 de outubro, Canfora está recebendo apoio de diversos intelectuais italianos e estrangeiros, e também de veículos de imprensa, como o jornal francês Libération, que organizou uma petição em favor do historiador.
A Editora Estação Liberdade, como forma de se manifestar em defesa de seu autor, traz para o Blog a tradução de uma entrevista que ele concedeu ao Libération. Confira:
Luciano Canfora, o historiador processado por Giorgia
Meloni: “O poder trata os intelectuais como inimigos”
O
intelectual comunista italiano, atacado por difamação pela chefe do governo
italiano por tê-la qualificado de “neonazista na alma”, está sendo processado e
será julgado em outubro. Ele persiste e endossa, explicando que se sente
“totalmente tranquilo” Entrevista por Adrien Naselli “Um caso
extremamente grave”, opina numa tribuna do jornal Libération um coletivo
de uma centena (atualmente mais de mil) de universitários europeus. Pela
primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial, um chefe de governo leva à
Justiça um universitário. E não é
qualquer um: Giorgia Meloni ataca Luciano Canfora, 81 anos, ilustre filólogo
clássico (estudo das línguas e literatura grega e latina) reconhecido e
apreciado no mundo inteiro, e comunista assumindo. Publicados em várias
línguas, seus textos mais conhecidos destrincham a democracia e o poder,
recorrem à Antiguidade para esclarecer os tempos atuais. No Brasil foram
publicados Júlio César, o ditador democrático (Estação Liberdade, 2002);
Crítica da retórica democrática (Estação Liberdade, 2007), além dos não
traduzidos La democrazia. Storia di un’ideologia (Laterza, 2004), La
natura del potere (Laterza, 2009), entre outros. A obra mais recente
publicada na Itália é Il fascismo non è
mai morto [O fascismo nunca morreu]
(Edizioni Dedalo, 2024). Ainda pela Estação Liberdade, sairá em junho de 2024 A
escravidão do capital. Em 2022,
Canfora palestrava num colégio em sua cidade natal, na região da Puglia, e
qualificou a presidente do Conselho de Ministros italiana de “neonazista na
alma”. Meloni, que não ocupava ainda suas funções atuais, havia ameaçado
levá-lo à Justiça, o que ela finalmente fez. Mas este processo de difamação não
assusta o historiador. Em que
estado de espírito o senhor se encontra na véspera do processo que lhe abriu
Giorgia Meloni? Estando
convicto da legitimidade de minha hipótese dizendo respeito à “psicologia das
profundezas” de minha demandante, estou totalmente tranquilo, ainda que fique
surpreso com a ação judicial que ela empreendeu. Estou profundamente agradecido
pela onda de apoio que se manifesta em toda a Europa. Fico compadecido: ainda
há pessoas com presença de espírito! Qual
olhar o historiador da democracia que o senhor é acaba vertendo sobre este
ataque contra um pesquisador, inédito desde 1945? Enquanto
pesquisador desde sempre interessado pela história da democracia na Europa,
constatei diversas vezes que é sobretudo em clima de guerra que a intolerância
tende a se manifestar. Um arquétipo na história ocidental: penso em Cléon, demagogo ateniense,
contra Aristófanes, ator dramático em plena
Guerra do Peloponeso no século V a. C. Evidentemente, muitas vezes é o caso
quando o poder trata os intelectuais como inimigos: como Bismarck,
chanceler da Alemanha imperial, contra o historiador Theodor Mommsen em1882.
Condenado à prisão, ele abandona seu assento de deputado. Em que
medida seus engajamentos comunistas podem ter feito do senhor um alvo particular
da primeira-ministra? Desde 1998,
a imprensa de direita gosta de me atacar devido a minha candidatura nas listas
de um partido que se chamava Comunistas Italianos. Essa tendência ligeiramente
maníaca à polarização sempre me divertiu. Trata-se de um fenômeno interessante.
É a demonstração do fato de que as categorias políticas funcionam em dois
níveis: o nível biográfico imediato, “pontual”, contingente, e o nível
metafórico, dizendo respeito às grandes correntes do pensamento bem mais
duradouras que os partidos políticos. No caso em questão, isso permite atacar
ao mesmo tempo indivíduos tanto quanto grupos inteiros. Na
imprensa de vários países, inclusive na da França, o partido de Meloni é
qualificado de “pós-fascista”. Por que ela também não ataca aquelas e aqueles
que empregam o termo? Minha
hipótese é que a extrema direita italiana, desde seus inícios no final de 1946
(nascimento do Movimento Social Italiano, fundado por Giorgio Almirante, antigo
funcionário da República pro-nazista de Salò) se esforça para apagar o elo profundo
que existia entre a República de Salò (República Social Italiana) e seus
protetores hitleristas, daí a intolerância que se manifesta quando alguém
destaca este elo indelével. Se a República Social Italiana existiu, é graças ao
apoio dos exércitos nazistas ocupando a Itália do Norte de setembro de 1943 ao
fim de abril de 1945. Era portanto um “Estado-satélite” do Terceiro Reich tanto
na prática, com a perseguição aos judeus, quanto no pretenso “socialismo
nacional”. E o Movimento Social Italiano, berço político de Giorgia Meloni, se
atrelava, no nome bem como em seu programa, mas igualmente nas próprias
personalidades de seus dirigentes, justamente a essa “República”.
“Um caso
extremamente grave”, opina numa tribuna do jornal Libération um coletivo
de uma centena (atualmente mais de mil) de universitários europeus. Pela
primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial, um chefe de governo leva à
Justiça um universitário.
E não é
qualquer um: Giorgia Meloni ataca Luciano Canfora, 81 anos, ilustre filólogo
clássico (estudo das línguas e literatura grega e latina) reconhecido e
apreciado no mundo inteiro, e comunista assumindo. Publicados em várias
línguas, seus textos mais conhecidos destrincham a democracia e o poder,
recorrem à Antiguidade para esclarecer os tempos atuais. No Brasil foram
publicados Júlio César, o ditador democrático (Estação Liberdade, 2002);
Crítica da retórica democrática (Estação Liberdade, 2007), além dos não
traduzidos La democrazia. Storia di un’ideologia (Laterza, 2004), La
natura del potere (Laterza, 2009), entre outros. A obra mais recente
publicada na Itália é Il fascismo non è
mai morto [O fascismo nunca morreu]
(Edizioni Dedalo, 2024). Ainda pela Estação Liberdade, sairá em junho de 2024 A
escravidão do capital.
Em 2022,
Canfora palestrava num colégio em sua cidade natal, na região da Puglia, e
qualificou a presidente do Conselho de Ministros italiana de “neonazista na
alma”. Meloni, que não ocupava ainda suas funções atuais, havia ameaçado
levá-lo à Justiça, o que ela finalmente fez. Mas este processo de difamação não
assusta o historiador.
Em que
estado de espírito o senhor se encontra na véspera do processo que lhe abriu
Giorgia Meloni?
Qual
olhar o historiador da democracia que o senhor é acaba vertendo sobre este
ataque contra um pesquisador, inédito desde 1945?
Em que
medida seus engajamentos comunistas podem ter feito do senhor um alvo particular
da primeira-ministra?
Na
imprensa de vários países, inclusive na da França, o partido de Meloni é
qualificado de “pós-fascista”. Por que ela também não ataca aquelas e aqueles
que empregam o termo?
Link da entrevista original: https://www.liberation.fr/idees-et-debats/opinions/luciano-canfora-lhistorien-attaque-en-justice-par-giorgia-meloni-le-pouvoir-traite-les-intellectuels-comme-des-ennemis-20240415_N53JJ46SQJAN7GO6J6DIKCL3QM/
A Estação Liberdade agradece ao Libération a gentil cessão desta entrevista. A tradução é de Angel Bojadsen.
Não é a primeira vez que o governo de Giorgia Meloni é acusado de censurar escritores e intelectuais. No último 20 de abril, um programa do canal estatal Rai 3 gerou indignação quando anunciou o cancelamento da participação do escritor italiano Antonio Scurati, visto como censura por parte da emissora e do governo de Meloni.
O premiado autor, mais conhecido pelo
romance M, o filho do século, sobre
Benito Mussolini, leria no programa um monólogo em que definia o partido Fratelli
d'Italia da primeira-ministra como “grupo dirigente pós-fascista” e acusava a
sigla explicitamente de querer “reescrever a história” ignorando a resistência
e o antifascismo. O monólogo estava previsto para ser transmitido naquele
dia, pouco antes da comemoração do Dia da Libertação, data celebrada em 25 de
abril em prol da libertação do nazifascismo.
Estudantes e instituições de ensino de
toda Itália se mobilizaram depois para ler o monólogo do escritor. “Como
estudantes, decidimos devolver a voz que foi tirada a Scurati, começando pelas
salas de aula”, disse Camilla Piredda, coordenadora nacional da União de Estudantes
de Universidades.
Link para assinar a petição: https://philologiedelavenir.fr/apoio-a-luciano-canfora-pela-italia-pela-europa-defendamos-a-liberdade-de-pensamento/