Uma coisa e ao mesmo tempo outra

Que Yoko Ogawa se estabeleceu como uma das escritoras de maior prestígio no Japão, não há quem possa discordar. Dona de diversos prêmios de literatura japonesa, entre os quais o Akutagawa pela novela Diário de gravidez, o Yomiuri por A fórmula preferida do professor, o Izumi Kyoka por Burafuman no maiso e o Tanizaki por Mina no koshin (estes últimos ainda sem tradução no Brasil), Ogawa aborda em suas obras temas que envolvem a psiquê humana, como memória, solidão e alienação social.


Em nosso catálogo de literatura japonesa, Yoko Ogawa está presente com quatro títulos: O museu do silêncio (trad. Rita Kohl), A fórmula preferida do professor (trad. Shintaro Hayashi), A polícia da memória (trad. Andrei Cunha) e o nosso recém-lançado volume A piscina; Diário de gravidez; Dormitório (três novelas) (trad. Eunice Suenaga).
 
Amor ou obsessão?

Publicada originalmente no Japão em 1990, e pela primeira vez em inglês em 2008, A piscina é a representação de como os nossos desejos e prazeres podem ser perturbadores. Yoko Ogawa traz como personagem principal Aya, uma adolescente cujo os pais administram um orfanato e que acaba se apaixonando por Jun, um talentoso mergulhador. O que à primeira vista parece ser um “típico amor de adolescente”, Ogawa transforma em uma obsessão que revela muito sobre como agem e reagem os seres humanos aparentemente comuns.

Em determinada passagem da novela, podemos acompanhar, por exemplo, a confissão sádica de Aya, que se deleite ao maltratar Rie, a criança mais nova do orfanato.

O choro violento, que até parecia romper alguma parte do seu corpo, satisfez meu “sentimento cruel”. Desejei infinitamente que ela chorasse mais e mais, pois minha satisfação era maior nas ocasiões como a de hoje: sem ninguém para poder abraçar e consolar esse choro, eu podia saboreá-lo até me satisfazer por completo, sozinha, ainda mais por se tratar de um simples bebê que não consegue explicar a situação depois.” [pág. 33]

Em uma entrevista concedida ao jornal The New York Times em 2019, Yoko Ogawa fala sobre a capacidade humana para a crueldade e explica o motivo de impor temas como esses em seus personagens. Leia um trecho do texto produzido pelo jornal a partir da entrevista:


Ogawa disse que não escreve sobre personagens cruéis para condená-los, mas sim para explorar o que pode levar alguém à violência física ou emocional. “As pessoas tentam esconder isso dos outros ou tentam encobrir”, disse ela. “Mas, no mundo da literatura, você pode revelar essa natureza, e não há problema em fazê-lo. ”
 
É ou não é?


Escrever diários? Normal, mas geralmente sobre si mesmo e não sobre a gravidez da irmã, como é o caso deste Diário de gravidez. Gravidez, também, acontece desde que a humanidade se entende por gente. Como faz Yoko Ogawa, então, para tomar a normalidade das coisas e torná-la algo peculiar, interessante, instigante à percepção dos leitores?

Ao se consultar na maternidade ontem, ela era oficialmente uma gestante, mas não havia nada de especial no seu jeito. Eu me surpreendi, pois achei que ela fosse ficar mais nervosa, aparentando alegria ou confusão. Em geral ela ficava abalada por pequenas coisas: o fechamento do salão de beleza que costumava frequentar, a morte natural do gato do vizinho, o corte de água por um dia em funcão de obras no sistema de abastecimento. Ela ficava nervosa e logo procurava o doutor Nikaido. [p. 69]

Utiliza muita sensibilidade e muitas técnicas narrativas. Uma delas, sutil, é a de deixar sempre uma ambiguidade no ar: a gravidez que é narrada nas várias entradas do diário, por exemplo, às vezes parece tão comum como qualquer outra, às vezes tão estranha como se fosse um tipo próprio de gravidez e às vezes parece até mesmo que não é uma gravidez. Fazendo com que os leitores suspeitem do fato central da narrativa, Ogawa oferece a possibilidade de imaginação e faz o convite para que a história seja escrita por todos que com ela façam contato.


 
Está ou não está?

Todo dia alguém vai lembrar de um fato ocorrido em sua vida e a lembrança que vem é difusa, confusa e incompleta. A narradora de Dormitório, sem um nome definido e a protagonista mais velha de todas estas três novelas, sairá numa jornada que faz paralelo com a maneira de se lembrar. Ela retorna a um local em que viveu — o dormitório — e o prédio está deteriorado, as pessoas estão sumindo e até o corpo do administrador do lugar perdeu algumas partes (faltam-lhe os dois braços e uma perna). Como não se perder junto com as próprias memórias que estão desaparecendo, questiona Yoko Ogawa nesta novela primorosa.

Mesmo com o início das aulas, o dormitório continuava silencioso. Quando achava que tinha ouvido passos de alguém nos fundos, eles logo eram abafados pelo som do vento. Na época em que eu morava no dormitório, sempre ecoavam musicas de fitas cassete, risadas e barulho de motor de moto, mas agora o lugar parecia completamente livre e purificado desses ruídos cheios de vida. Da última vez havia tulipas laranja no canteiro, agora florescia uma fileira de tulipas vermelho-escuras. Uma abelha brincava de esconde-esconde entre as pétalas em formato de copo. [p. 135]
 

A piscina; Diário de gravidez; Dormitório (três novelas), de Yoko Ogawa, irá com certeza prender os leitores do início ao fim.


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